Não há como afirmar que José de
Alencar não foi um escritor de talento da nossa literatura e que sua obra não
tenha sido um marco do nosso Romantismo. Nascido em 01 de maio de 1829, o
escritor brasileiro ainda criança aprendera a ler e o fazia com frequência,
pois era constantemente solicitado a que lesse para a mãe jornais, revistas e
“volumes de uma diminuta livraria romântica” Alencar (2000, p.10), o que o
tornara, portanto, logo cedo, um conhecedor das letras e com isso envolvera-se
em diversas leituras que formaram o seu caráter de escritor.
Alencar viveu na época do
Império em que a aristocracia europeia já não estava no poder sendo substituída
francamente pela burguesia. Dessa forma
é que também começou-se a criar uma literatura para essa nova classe que “já
inquieta e logo libertária nos que veem bloqueada a própria ascensão dentro dos
novos quadros; imersa ainda na mudez da inconsciência, naqueles para os quais
não soara em 89 a hora da Liberdade-Igualdade-Fraternidade.” Bosi (2006, p.95).
No entanto esta mesma
burguesia que gritou em alto e bom som na França que exigia a igualdade,
fraternidade e liberdade era agora detentora do poder e não tardou a também
querer dominar como afirma Neto (1986, p.11):
A gestação do mundo
burguês foi um processo longo e doloroso, uma história de inaudita violência.
Cobrindo um espaço temporal multissecular, caracterizou-se pela destruição
brutal de antigos modos de vida, pela substituição de modelos anteriores de
controle social, pela supressão a ferro e fogo das formas de organização
societária precedentes.
No Brasil colonial e agrícola permanecia o
latifúndio, o escravismo e tudo o que era produzido continuava sendo exportado
visando o pagamento de dividas externas adquirida com a vinda da família real
para o país que, mantinha o conservadorismo monárquico.
Alencar,
como afirma em como e porque sou romancista, observava toda essa sociedade e
adquiria assim subsídios para os seus escritos futuros. Expressa-se assim o
escritor cearense: “Estes fatos jornaleiros, que à própria pessoa muitas vezes
passam despercebidos sob a monotonia do presente formam na biografia do
escritor a urdidura da tela, que o mundo somente vê pela face do matiz e dos
recamos.” Alencar (2000, p. 10). Observador arguto via nos fatos cotidianos
todas as mazelas e virtudes que acompanhavam a elite da época. Alguns da
sociedade frequentavam sua casa e Alencar então se fazia ledor para eles.
Tornou-se dessa forma afeito aos livros.
Com
esse conhecimento vasto é que torna-se possível a Alencar escrever suas obras
procurando trazer para o Brasil uma cultura própria em que se observasse uma
Literatura com características brasileiras. No entanto não há uma unanimidade
sobre esse esforço de Alencar que traz motivos de desconfiança sobre sua
originalidade. Desta forma, provavelmente contrariado com as questões atinentes
à originalidade, escreve Nabuco,apud Coutinho 1965:
Luciola não é senão a
Dama aux camélias adaptada ao uso do demimonde fluminense; cada novo romance
que faz sensação na Europa tem uma edição brasileira dada pelo Sr. J. de
Alencar, que ainda nos fala da originalidade e do “sabor nativo” dos seus
livros.”
Trata-se de Luciola, mas diversas obras de
José de Alencar trará essa questão da originalidade átona como se não houvesse
um cruzamento de ideias quando se escreve, não houvesse intertextualidade e uma
junção de conhecimentos já adquiridos para que se reinvente o mundo. Essa
reinvenção do poeta não será uma cópia, pois será feita sob à sua ótica , sob o
seu olhar. Teremos, portanto o novo que poderá ou não tocar o âmago do leitor
fazendo-o compartilhar de uma nova visão de mundo ou por assim dizer
reinterpretar o mundo.
Dentro dessa ótica
alencariana de ver o mundo e a sociedade de sua época é que pode-se fazer uma
análise do livro Senhora e verificar um perfil de mulher irônica, bela e
herdeira de uma grande fortuna que busca sua vingança contra o homem que, no
passado a desprezou para adquirir dinheiro por meio do dote de outra mulher.
O ROMANCE
O romance, publicado em
1875, é considerado urbano e traz em seu bojo um dos perfis de mulher das obras
alencarianas. Possui como protagonista Aurélia e Seixas. Aquela, desprezada por
este busca uma forma de vingança e a encontra em uma negociata que se torna
perfeita para realização do seu plano. Negocia o próprio casamento com Fernando
por um dote de cem contos de réis. O romance faz uma critica à decadência de valores do
segundo império e a uma sociedade que vive de aparências e ambição. Divide-se
em quatro partes que são: O preço, Quitação, Posse e Resgate portanto sugere
uma transação comercial nos moldes capitalista em voga na época tendo em vista
a Revolução Industrial encabeçada pela Inglaterra que trouxe mais gente para a
cidade em detrimento do campo gerando assim uma maior necessidade de produção,
de compra e venda. É, portanto, utilizada de natureza econômica para os meios
de vingança como afirma Pontieri (1988, p.52):
Preço, quitação,
posse e resgate indicam, antes de mais nada, fases sucessivas de um circuito de
natureza econômica. Tratando-se da mercadoria na sua dupla face de valor-de-uso
e valor, preço quitação indicam o percurso por ela realizado, enquanto valor,
na esfera do mercado.
Ou ainda, continua a mesma
autora, “A sociedade carioca é um viveiro de ‘noivos em disponibilidade’ que,
como valores-de-uso, colocam-se no mercado para realizar seu valor ao atrair o
equivalente universal, uma dada quantia em ouro.” (ibidem, p. 52).
Os personagens secundários
são envoltos a todo tempo por Aurélia que parece manter todos ao seu redor.
Dominá-los. Há uma possibilidade de entrar na casa de Aurélia por meio de
Firmina que garante o espaço do público.
“Do ponto de vista constrativo ou funcional, Firmina – a mãe postiça – serve de
garantia da continuidade do espaço público na privacidade da casa de Aurélia. (ibidem,
p. 74). Lemos de moral hipócrita, mas que busca justificativas para os seus
atos mercantilistas e mamomicos como, por exemplo, no momento em que cheio de
satisfação pelo resultado obtido na empreitada que envolvia seixas, refletia
sobre o acontecido:
-Não se recusam cem contos
de réis, pensava ele, sem uma razão sólida, uma razão prática. O Seixas não a
tem; pois não considero como tal essas palavras ocas de tráfico e mercado, que
não passam de um disparate. Queria que me dissessem os senhores moralistas o
que é esta vida senão uma quitanda? Seixas estava, portanto, na condição de bem
servir aos planos de Aurélia que tinha necessidade de permanecer oculta na
primeira parte do plano. “A sobrinha, que o despreza, age porém da mesma
forma.” (ibidem, p. 75).
Torquato ribeiro, Adelaide
do Amaral, Eduardo Abreu são a outra face do romance contrapondo-se ao casal,
mas que da mesma forma permanecem no jogo de Aurélia e parecem movimentar-se de
acordo com os desejos desse anjo caído do firmamento.
AURÉLIA
Aurélia surge logo no começo
e é retrada como uma estrela que surgiu no céu fluminense. Tem-se assim a ideia
sugerida pela metáfora que o céu fluminense representa a sociedade fluminense e
que Aurélia era mais uma estrela a surgir nesse céu, portanto nessa sociedade.
Também é dito que Aurélia surgiu atravessando “o firmamento da Corte como
brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento e que
produzira o seu fulgor?” Uma nova estrela que veio do céu. ”Como caíste desde o
céu, ó estrela da manhã, filha da alva!” Is. 14:12. Veio para mostrar a
pujança, beleza e astúcia de uma mulher avassaladora. Mulher tempestiva que veio do alto e caiu
entre nós como um Lúcifer enfurecido que nada mais deseja a não ser dominar e mostrar o seu poder e beleza a
todos que, de alguma forma, não resistem ao seu brilho e capacidade de
persuasão. Nada mais deseja é um termo que não retrata a realidade. Desejava
algo mais. Ele iria mostrar a Seixas o quanto a ambição pelo dinheiro pode ser
perniciosa e levar o ser humano a escravidão, mesmo que esta não fosse física
seria da alma, dos sentimentos e da consciência.
Aurélia é o oposto de Seixas
que é imóvel, passivo sem atitudes capazes de mudar a rota das coisas. Aurélia
faz acontecer. Tanto assim que “Traz para casa esse homem livre e, na qualidade
de ‘senhora’, transforma-o em escravo e faz com que ele assim se veja.”
Pontieri ( 1988, p.56).
De repente o leitor se vê
envolvido em uma história com uma narrativa atraente em que a própria narrativa
parece querer atraí-lo para dentro de si assim como a própria heroína. São
criadas expectativas por meio de interrogações tais como: “Como acreditar que a
natureza houvesse traçado as linhas tão puras e límpidas daquele perfil para
quebrar-lhes a harmonia com o riso de uma pungente ironia?” E o desejo e a
curiosidade do leitor fazem o resto. Ele procura por respostas e, desta forma,
é guiado pelo narrador pelo mundo de Aurélia que perpassa a corporeidade
visível. Que vai além do expressamente visto. É necessário perceber seus
trejeitos de mulher buscando nessa moça de 18 anos observar seu ar provocador e
suas expressões cheias de desdém que contrastam com a beleza e expressão
serena. Reina constantemente a ironia em Aurélia. Ela critica Fernando com
ironia e parece rir de suas atitudes medíocres.
Aurélia é, enfim, como
afirma Pontieri (1988, p.77):
ativa, brilhante,
luxuriante. ‘Luxuria’ aqui é algo que ultrapassa o nível estritamente sexual e
sensual. Remete à pertinência cósmica de Aurélia, à riqueza de mundos em que
ela tem trânsito livre. Participa de todos os reinos: mineral, vegetal, naimal;
e das condições humana e divina. É ouro, mármore, jaspe; tem dentes de pérola e
orelhas de nácar; é flor, leoa, borboleta e cisne; é mulher, é deusa e demônio.
Participa dos quatro elementos. Tem o fogo prometéico da espirituralidade, mas
também o da corporeidade da feiticeira, fogo de conhecimento carnal e
intelectual; artista criadora e bacante.(...) por isso, ela é também sílfide –
espírito do ar; e salamandra – o espírito do fogo.
Essa é a Aurélia apresentada no romance. Esse
é o perfil de mulher de Senhora.
SEIXAS
Seixas por sua vez é a imobilidade de
natureza dúbia e incapaz de ações mais relevantes. Recatado e dócil, manifesta
uma passividade que permite a Aurélia agir sobre ele preparando todo um caminho
que o leva a humilhação, frustração e peso na consciência. “Ele – passivo,
cinzento, contido.” (ibidem, p. 77).
Seixas, mesmo vivendo na pobreza, ostenta o
que não é e o que não tem, pois era ambicioso e com pretensões de casar-se com
uma moça rica. Dessa forma despreza Aurélia Camargo com a intenção de casar-se
com uma moça rica, Adelaide Amaral e pelo dote que pretendia receber. Há, no
entanto, a interferência de Aurélia e o casamento não se consuma ficando Seixas
preso à Aurélia pela divida adquirida e o casamento arranjado.
No romance de José de Alencar há uma forte
referência ao capitalismo que torna a pessoa vil e capaz de ações não ortodoxas
para alcançar seus objetivos. Tudo é comercio e as aparências sociais contam
para que os objetivos sejam alcançados.
No entanto não se pode deixar de lado a
questão da vingança e do ódio que se torna internalizado quando se é repudiado
em desfavor do outro. A capacidade de ação de Aurélia tomou proporções
ilimitadas e seus planos tornaram-se sua fonte de vida quando fora rejeitada.
Ademais não se pode esquecer que Aurélia não tinha família e que a solidão e
ausência era fator presente.
A narrativa de Senhora é recheada de ironia,
instantes de plenitude e risco de ruptura devido a um equilíbrio tenso. Tem em
seu desfecho a redenção dos personagens protagonistas que se redescobrem
atirando-se Aurélia aos pés de Seixas e recuperando este a sua dignidade quando
consegue o dinheiro para restituir Aurélia. Nesse momento a uma nova visão, uma
nova leitura do romance que propõe uma nova leitura dos dados. São as máscaras
trocadas...
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, José. Senhora.
2ª ed. Rio de Janeiro: Escala, 2002.
________Como e porque sou romancista. Minas
Gerais: 2000/2003.
BOSI, Alfredo. História
concisa da Literatura Brasileira. 48ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
NETO, José Paulo. O que é Marxismo. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
PONTIERI, Regina Lúcia. A Voragem do Olhar. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1988.
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